quinta-feira, 27 de maio de 2010

A hipótese mais simples é normalmente a mais viável

  Há quem tenha um olho de cada cor: um verde e um castanho, um castanho e um azul, um verde e um cinzento, um azul e um de vidro... Jim Stevens tinha uma orelha de cada cor. E nenhuma que combinasse com o seu tom de pele. Uma era púrpura e a outra cor de mostarda. Tinha sido assim desde sempre, desde que se lembrava, pelo menos. Em criança era gozado por todas as outras crianças, e inclusivé alguns adultos: " Eh eh, olha...hm, olha... o miudo que tem uma orelha púrpura e outra cor de mostarda!" - ao que Stevens não conseguia deixar de responder na sua cabeça: "Está bem, e agora? Queres uma bolacha?".
  Porém tudo mudou quando entrou para a universidade. Era simplesmente excêntrico. Houve até uma altura em que se tornou moda, e toda a gente no campus queria ter as orelhas às cores. Acabou por ser proibida pela reitoria (em vão), já que os estudantes tentavam tingir as cartilagens com os líquidos coloridos do laboratório de química, alegando que a única alternativa eram os lápis de cera, e que esses não duravam mais de 2h. Houve mesmo um aluno particularmente dotado, Ron Johnson, que tentou imprimir a cor desejada nos abanicos laterais da sua cabeça. Literalmente. Ron, sem que o professor de física avançada o consiga ainda hoje explicar, arranjou forma de enfiar o crânio na impressora da biblioteca. Um erro no cálculo do ângulo de inserção fez com que não as orelhas mas os dentes de Ron fossem impressos de um, pouco agradável, cinza azulado (a sua sensibilidade para as cores também não era a melhor). No campus o acontecimento foi marcado de grandes festejos, gargalhadas e garrafas sem carica. Porém, receando sermões e punições paternais, Ron catapultou em trambolhões sonoros que se tratava de escurbuto, e acabou por ser internado num centro de reabilitação para marinheiros, nos dois semestres seguintes.
  Enquanto isto, Jim era o centro das atenções, conseguia manter o que todos os outros nem conseguiam atingir. Tinha filas de raparigas à porta do seu dormitório, todos queriam conhecer o Jim Stevens. Ia a todas as festas, comia e bebia sem pagar, A universidade foi a melhor altura da sua vida. Pelo menos até a moda passar, quando apareceu um caloiro com uma t-shirt amarela. Jim passou a andar de gorro e lembrou-se que tinha um curso para fazer. Tinham passados 10 anos e chumbara a todas as cadeiras.
  Anos mais tarde não conseguia arranjar emprego. As suas orelhas eram um problema e a maior parte dos empregadores não aceitavam que usasse o seu gorro de lã grossa cor-de-laranja nas horas de expediente. Um dia, aproveitando a ida ao mecânico por caisa do seu dispensador de Pez que ficara encravado, Jim indagou se haveria resposta ao seu problema. Peter Peterson, o mecânico, levou-o para uma salinha, pequena, rectangular, totalmente branca. De repente, com um estalido, abrem-se simultaneamente pequenas janelas quadradas, negras no interior, ao longo das duas paredes laterais. Ouvem-se gritos. Altos e agudos. Cá fora Peterson sorri furtivamente enquanto passeia os dedos pelas teclas do piano imaginário que está pousado em cima da sua secretária, Miss Taylor, uma jovem tímida e atraente, mas não demasiado. Alguns minutos depois os gritos param. Instala-se um silêncio mórbido. Perterson levanta-se, fecha a tampa do piano imaginário e dirige-se à sala. Ao projectar a mão em direcção à maçaneta esta roda, Peterson dá um passo atrás. A porta começa a entreabrir-se mostrando uma linha de luz branca, intensa, que vai aumentando. Peterson recua lentamente, enquanto lentamente a porta se abre. Ergue o olhar e eis que sata diante dele um Jim Stevens sorridente de olhos esbugalhados. Projecta-se sobre peterson e abraça-o. Este abraça-o de volta e trocam palmadas fortes nas costas um do outro, enquanto riem cada vez mais alto. Jim está livre do seu problema. As suas orelhas não são mais de cores diferentes que não combinam com o seu tom de pele. Agora o lado esquerdo de Jim é todo ele completamente púrpura e o lado direito completamente cor de mostarda. As suas orelhas não voltarão a ser um problema.
  Radiante, Jim Stevens agradece a Peterson, paga-lhe o devido e este devolve-lhe a factura. Quanto ao dispensador de Pez, foi inevitavelmente para a sucata, não tinha arranjo.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Na dúvida vire à direta

 John Doe estava em frente ao espelho a praticar expressões. Há mais de duas horas, agora que penso nisso. Era o aniversário da sua mãe, Jane Doe, com quem mantinha uma relação conflituosa, talvez por esta o ter deixado sozinho no supermercado em criança, durante três semanas, alegando que se esquecera de um estufado de peixe-balão ao lume, e que só o tinha conseguido largar quando chegou à combinação perfeita de condimentos e ervas selvagens (a mesma que usava a sua bizavó Hanna Doe, mas que Jane nunca chegara a provar). Ou, por outro lado, poderia ser o facto de sabotar todas as relações de John, afirmando que este possuia um variado número de doenças venéreas.
- Elas não são suficientemente boas para ti meu filho! Nunca nenhuma será suficientemente boa para ti... Queres uma maçã?
Como se Jane se preocupasse minimamente com ele...
  E alí estava, a viver na casa dos 40, com uma renda demasiado alta, devo dizer, a praticar expressões em frente ao espelho há três horas. Dava tudo para não ter de ir à idiótica festa de aniversário onde nem a mãe, nem a familia ou o resto dos convidados nutriam o mínimo afecto por ele. De facto, a sa presença parecia sempre originar uma onda de limpezas de garganta e estrabismo, para não falar do sarcasmo insultuosamente gratuito. Como se o seu emprego como estafeta na pizzaria local tivesse piada. Ou como se a sua bicicleta e farda vermelha e amarela, com boné a condizer, fosse algo de absurdamente hilariante.
- Está a ficar tarde, é melhor ir-me vestir... Mas talvez fique mais um pouco, o meu riso indiferente e auto-confiante ainda precisa de uns retoques... Ah e ainda não treinei os dois beijinhos de parabéns, o sorriso parvo e a voz melosa para a mãe... e tem de parecer real... Vou chegar atrazado, o que significa que preciso de praticar o discurso rotineiro e estou-me-nas-tintas para quando todos os olhos da sala se precipitarem sobre as minhas sobrancelhas, como grifos à carcaça de carneiro putrefacta e parcialmente mutilada.
(toca a campainha)
 John destranca a porta e entreabre-a. Um homem baixo, com o corpo tão redondo quanto a sua cabeça careca, erguia-se à sua porta, vestido com um macacão em tempos azul-ultramarino. Segurava a seu lado várias paletes empilhadas numa daquelas estruturas de metal com duas rodas. O estampado branco no bolso direito do peito denunciava-lhe a identidade: Ray.
- Bom dia, é para reabastecer a vending machine.
- Ah, sim, bom dia hum... Ray, que aconteceu ao Edmund?
- Está de baixa, partiu uma perna durante uma entrega de rolos de polvo vivo, os tentáculos do bicho enrolaram-se-lhe à volta e o pobre coitado caiu com o nariz direito no chão.
- Mas... pensei que tivesse partido a perna...
- Sim, isso foi depois, quando os paramédicos pousaram os "Jaws of life" em cima dele.
- Chato...
- Sim...
- Bem, é por aqui...
 Ray leva a mão ao bolso e abre a vending machine com a sua chave mestra. Começa então a repôr o stock: rolos de salmão, camarão, atum, vegetarianos, com ou sem ovas, bolos de arroz... John espreita curioso.
- Vai demorar? é que já estou atrazado...
- Não não, mais uns minutos. Não o roubo dos seus compromissos...
- Optimo. Se bem que parte de mim espera que ocorra um qualquer erro técnico impossivel de resolver em menos de 24h, que me obrigue a ficar por aqui...
- Ah, percebo-o bem.
- Nunca tinha reparado como é espaçoso isto lá dentro...
- E nem lhe ocupa muito espaço na cozinha...
- Hm, ouça, Ray... Quando é a sua próxima ronda por estes lados?
- Quinta-feira.
- Hm, isso são seis dias... Ray, gostava de lhe pedir um favor... Não feche a porta, acho que vou refrescar as ideias.
- Com certeza, desde que possa ficar com os trocos da recolha.
- Não o faria de outra forma.
- Mas, amigo, não me vai convidar a entrar?
- Ah, claro que sim, esteja à vontade! Onde deixei as minhas maneiras...? Talvez no porta-luvas... Mas diga-me, que pensa da teoria Kantiana da faculdade do juizo?
- Ah, vejo que sabe receber os seus convidados... Bem, para começar acho que depende dos olhos, inteiramente dos olhos...
- Bem apontado! Dos olhos e de onde vêm agarrados, se bem que por vezes parece que é a um pedaço de humus.
E então ficaram os dois dentro da vending machine de sushi, argumentando alegremente até quinta-feira, altura em que alegaram uma confusão no atrazo da hora para se safarem das acusações judiciais.