sexta-feira, 21 de maio de 2010

Na dúvida vire à direta

 John Doe estava em frente ao espelho a praticar expressões. Há mais de duas horas, agora que penso nisso. Era o aniversário da sua mãe, Jane Doe, com quem mantinha uma relação conflituosa, talvez por esta o ter deixado sozinho no supermercado em criança, durante três semanas, alegando que se esquecera de um estufado de peixe-balão ao lume, e que só o tinha conseguido largar quando chegou à combinação perfeita de condimentos e ervas selvagens (a mesma que usava a sua bizavó Hanna Doe, mas que Jane nunca chegara a provar). Ou, por outro lado, poderia ser o facto de sabotar todas as relações de John, afirmando que este possuia um variado número de doenças venéreas.
- Elas não são suficientemente boas para ti meu filho! Nunca nenhuma será suficientemente boa para ti... Queres uma maçã?
Como se Jane se preocupasse minimamente com ele...
  E alí estava, a viver na casa dos 40, com uma renda demasiado alta, devo dizer, a praticar expressões em frente ao espelho há três horas. Dava tudo para não ter de ir à idiótica festa de aniversário onde nem a mãe, nem a familia ou o resto dos convidados nutriam o mínimo afecto por ele. De facto, a sa presença parecia sempre originar uma onda de limpezas de garganta e estrabismo, para não falar do sarcasmo insultuosamente gratuito. Como se o seu emprego como estafeta na pizzaria local tivesse piada. Ou como se a sua bicicleta e farda vermelha e amarela, com boné a condizer, fosse algo de absurdamente hilariante.
- Está a ficar tarde, é melhor ir-me vestir... Mas talvez fique mais um pouco, o meu riso indiferente e auto-confiante ainda precisa de uns retoques... Ah e ainda não treinei os dois beijinhos de parabéns, o sorriso parvo e a voz melosa para a mãe... e tem de parecer real... Vou chegar atrazado, o que significa que preciso de praticar o discurso rotineiro e estou-me-nas-tintas para quando todos os olhos da sala se precipitarem sobre as minhas sobrancelhas, como grifos à carcaça de carneiro putrefacta e parcialmente mutilada.
(toca a campainha)
 John destranca a porta e entreabre-a. Um homem baixo, com o corpo tão redondo quanto a sua cabeça careca, erguia-se à sua porta, vestido com um macacão em tempos azul-ultramarino. Segurava a seu lado várias paletes empilhadas numa daquelas estruturas de metal com duas rodas. O estampado branco no bolso direito do peito denunciava-lhe a identidade: Ray.
- Bom dia, é para reabastecer a vending machine.
- Ah, sim, bom dia hum... Ray, que aconteceu ao Edmund?
- Está de baixa, partiu uma perna durante uma entrega de rolos de polvo vivo, os tentáculos do bicho enrolaram-se-lhe à volta e o pobre coitado caiu com o nariz direito no chão.
- Mas... pensei que tivesse partido a perna...
- Sim, isso foi depois, quando os paramédicos pousaram os "Jaws of life" em cima dele.
- Chato...
- Sim...
- Bem, é por aqui...
 Ray leva a mão ao bolso e abre a vending machine com a sua chave mestra. Começa então a repôr o stock: rolos de salmão, camarão, atum, vegetarianos, com ou sem ovas, bolos de arroz... John espreita curioso.
- Vai demorar? é que já estou atrazado...
- Não não, mais uns minutos. Não o roubo dos seus compromissos...
- Optimo. Se bem que parte de mim espera que ocorra um qualquer erro técnico impossivel de resolver em menos de 24h, que me obrigue a ficar por aqui...
- Ah, percebo-o bem.
- Nunca tinha reparado como é espaçoso isto lá dentro...
- E nem lhe ocupa muito espaço na cozinha...
- Hm, ouça, Ray... Quando é a sua próxima ronda por estes lados?
- Quinta-feira.
- Hm, isso são seis dias... Ray, gostava de lhe pedir um favor... Não feche a porta, acho que vou refrescar as ideias.
- Com certeza, desde que possa ficar com os trocos da recolha.
- Não o faria de outra forma.
- Mas, amigo, não me vai convidar a entrar?
- Ah, claro que sim, esteja à vontade! Onde deixei as minhas maneiras...? Talvez no porta-luvas... Mas diga-me, que pensa da teoria Kantiana da faculdade do juizo?
- Ah, vejo que sabe receber os seus convidados... Bem, para começar acho que depende dos olhos, inteiramente dos olhos...
- Bem apontado! Dos olhos e de onde vêm agarrados, se bem que por vezes parece que é a um pedaço de humus.
E então ficaram os dois dentro da vending machine de sushi, argumentando alegremente até quinta-feira, altura em que alegaram uma confusão no atrazo da hora para se safarem das acusações judiciais.

1 comentário:

Anónimo disse...

*atraso